Alguns dizem que a morte se mostra às pessoas quando a hora de partir se aproxima se apresentando assim na forma de uma dama vestida de escarlata. E quando as lágrimas caem de seu olho nem as fadas têm poder maior para subverter a vontade da morte, nem poderiam porque é essa a mesma vontade do criador.
Sábita conhecia esta história. Sua avó Madame Viotti havia lhe contado e entendia porque o pai, caído em seus braços, não mais dava a devida atenção à sua hemorragia no abdômen, mas olhava através de uma parede destruída, em meio aquele caos, a dama de vermelho que o contemplava com uma agonia traçada em seu semblante e vertida sobre seu olho direito que deixava fugir lágrimas de sofrimento.
Ela entendia o olhar de seu pai porque também a via e sentia pena, admiração e raiva pela dama que estava ali para um único objetivo: levar seu pai.
Não poderia abandoná-lo! Não poderia deixá-lo! Tinha raiva por não estar ali na hora do ataque e por não ter tido coragem em seguir aqueles homens estranhos e com roupas esfarrapadas que saíram correndo em direção ao porto. No entanto, o que ela poderia ter feito mesmo sendo tão nova e frágil.
Quando Letiel, seu aspirante a namorado, adentrou a casa, Sábita percebeu que Banshee, a mensageira da morte, a dama de vermelho, não mais olhava para ela apenas seguia ao norte certamente em busca de outra alma.
-Vamos, Sábita! – Disse Letiel, ofegante. -Aqui não é mais um lugar seguro para ficar!
- Não vou deixá-lo! - Disse a menina chorando e segurando-o ainda mais forte em seus braços.
- Ele se foi, minha amada, e, se ficarmos aqui certamente iremos também se aqueles homens voltarem.
- Eu não me importo! -Disse ela contemplando a face do pai que não mais emitia semblante. Era apenas um rosto de alguém que virara passado na história deste mundo.
Letiel levantou a menina que reparava nos símbolos estranhos vermelho-sangue deixados na parede. Não compreendia o motivo pelo qual tudo isso acontecera e juntos levaram o senhor Basbaum para fora onde o pânico reinava e o sofrimento de muitas perdas podia-se ver através de rostos aturdidos e desvanecidos na multidão de plebeus. Testemunhas de um ataque de piratas na aurora daquela cidade que ainda estava indisperta durante o ocorrido.
Pararam aos pés da estátua de um Rei cuja cabeça estava a metros de distância do corpo.
-Você está bem? -Perguntou Letiel preocupado com a menina. -Digo... Fisicamente.
Desde criança ele sentia algo maior em seu coração quando se tratava de Sábita Viotti Basbaum e era correspondido da mesma forma pela menina.
-Sim, obrigado! -Disse ela limpando as lágrimas de seu rosto. -Mas não sei ainda onde está minha mãe. -Ela o abraçou forte deixando as lágrimas rolarem ainda mais sobre sua face de mármore ruborizada, porém, não por vergonha mas por tanto chorar.
Naquela noite ela estava sozinha. Letiel tinha prometido que encontraria sua mãe e assim partiu em busca de seu destino. O velório pelos mortos já se repetia pela sexta vez agora aberto à plebe. A menina se ajoelhava ao lado do pai moribundo no chão porque não foi possível improvisar tantos caixões para todos os mortos.
O clérigo havia iniciado a cerimônia e todos que ali se encontravam buscavam forças através de suas orações ao criador para poderem passar por tudo aquilo.
Sábita podia sentir as vibrações de energia etérea emitida através das orações, pois como sua avó um dia lhe disse, ela era uma menina especial. Aos nove anos foi iniciada como maga branca na arte da bruxaria, se manteve oculta a todos, até mesmo do coven de sua avó e isso foi uma ordem do próprio criador, porque sua missão no mundo ainda seria muito grandiosa.
E na hora em que o clérigo Cecil pediu a todos que se ajoelhassem e elevassem sua fé ao extremo tudo aconteceu para ela.
Um momento que marcaria sua vida para sempre e mudaria o curso da vida de um príncipe.
Foi neste exato momento que sete fadas entraram na Catedral da Sagrada Criação afim de velar por aqueles mortos até que fizessem a passagem para o Reino de Mantaquim. Eram tão belas que os olhos da menina se encantavam com a luz resplandecente emanada por elas. Assim, junto dos mortais as fadas velaram pelos mortos num lamento tão alvo que Sábita nunca mais esqueceria.
Apenas quando tudo já havia terminado e todos, inclusive o Clérigo, já haviam se retirado foi que Sábita resolveu se despedir de seu pai e partir. Mas antes que cruzasse a grande porta uma fada lhe veio ao seu encontro.
– Saudações, pequena criança! Sou Liäras a fada ao qual lhe ajudará a cumprir seu destino.
Não pense que Sábita se surpreendeu. Pelo contrário, este encontro já era esperado por ela há muito tempo, pois o próprio criador em sua iniciação anunciou que isso aconteceria.
– Qual é o meu teste? – Disse a garota sem tirar os olhos daquele ser belo e gracioso.
– Um príncipe precisará de sua ajuda no crepúsculo do dia da água, pois o destino dele regerá o destino da humanidade. Porém você terá que escolher, minha querida. O amor do seu coração também precisará de sua ajuda no mesmo momento e morrerá, porque você estará cumprindo uma ordem de seu criador.
“Esteja na sala marcada de sangue nos esgotos da cidade e prepare o ritual da purificação, você saberá quando o fazer e assim parte de seu destino nesse lugar estará cumprido.” -Dito isso, a fada desapareceu.
O sol já se punha sobre as montanhas e fazia no céu uma mistura de sonhos e fantasias com as mais belas cores de Nova Ether levando Sábita a perceber que sua hora havia chegado. Não sabia o que estava acontecendo naquela cidade, o porquê do caos e do estado de sítio imposto a pedido do Rei, mas tinha uma missão. Uma missão que não queria cumprir, pois sabia que seu amor morreria. No entanto, já estava adentrando os vastos corredores daquele grande e nojento esgoto.
Quando avistou o lugar, pode ouvir a voz do próprio criador dizendo:
– Vai e cumpra seu destino!
Ela se adentrou e ali fez rapidamente um círculo vermelho e grande seguido por mais três menores e negros. Ao seu redor escreveu numa língua antiga a frase de encantamento e esperou.
Quase uma hora se passou sem nada acontecer até que ouviu barulhos através da parede e nem sequer passava em seu coração que as próprias rainha e princesa dos Coração-de-Neve estavam cativas numa sala do outro lado. Pode ouvir o choro de uma mulher e as súplicas de uma jovem desesperada pela segurança de sua mãe. Foi neste instante que percebeu que o verbo era propício ao ato.
Ela se prostrou no meio círculo, elevou os braços e iniciou o ritual de purificação. Ele consiste em organizar toda e qualquer energia etérea que não estiver em sua harmonia natural permitindo, assim, a reorganização do éter e a quebra de feitiços lançados no ambiente ou em algum corpo específico.
Conforme proferia as palavras do ritual, executava uma espécie de dança e em certos espaços de tempos as letras começavam a resplandecer uma luz dourada e salientes que sobressaltava do chão. Já se passava quase meia hora desde o começo do ritual, meia hora de agonia sabendo que seu amado estava em algum lugar daquela cidade morrendo sem alguém para consolá-lo, sem ninguém para ampará-lo.
Lágrimas começavam a cair por seu rosto e um torpor sem igual crescia em seu peito. Neste instante, Banshee transpôs a porta de madeira maciça daquela sala. Contemplando a garota e seu feito, ela chorava apenas pelo olho direito e neste instante Sábita soube que seu amado havia partido.
Suas lágrimas aumentaram em espasmos incessantes de agonia e dor, e mesmo assim não parava de proferir as palavras necessárias para a purificação seja lá do que aquele ritual surtiria efeito.
A dama de vermelho passou por ela atravessando a parede a fim de observar o casal de príncipes que se encontravam em um momento desesperador para muitos, mas reconfortante para eles que tinham o coração um do outro mesmo naquela hora tão sombria, pois estavam vivos.
E foi na mesma hora quando a Princesa Branca Coração-de-Neve estendeu a espada afim de tentar salvar seu amado que toda energia canalizada pelo ritual de Sábita transpassou os arcabouços daquele lugar e adentrou aquela pele anfíbia de um príncipe que fora enfeitiçado pela bruxa mais poderosa que toda Nova Ether já ouvira falar e transformado lentamente em uma espécie de sapo gigante.
E quando Branca tocou-lhe com a espada, limpou o sangue vertido e assoprou uma magia de cura em seu torso, as escamas simbióticas daquela magia negra se romperam e toda e qualquer energia etérea distorcida se desvaneceu se reorganizando e transformando o enorme e desengonçado sapo novamente em um príncipe, um príncipe que ao anoitecer seria Rei.
Sábita estava sentada ao chão e suas lágrimas não paravam de descer de seus olhos. Seu semblante entregava a alma de uma jovem desnorteada, de uma pessoa cujo coração fora estraçalhado em mil pedaços e espasmos de soluços trazia mais ainda a sensação de vazio pra sua alma, um vazio cujo espaço antes fora preenchido por um amor, um amor que se chama Letiel, que agora já se encontrava nos braços de Banshee.
Neste instante, novamente, Liäras apareceu em sua frente, ela se sentou ao lado da menina dizendo:
– Parabéns, minha querida, você passou em seu primeiro teste! Decidiu obedecer a voz de seu criador e salvar a vida de alguém importante para os acontecimentos vindouros deste lugar em vez de se preocupar consigo mesma e com seus anseios em salvar a vida daquele que possui seu coração. Por isso, eu digo: vai em paz, pois eu mesma salvei a vida daquele que o coração lhe pertence. No entanto, nunca se esqueça de que muitos outros testes virão e lembre-se que seu caminho ainda é longo e aguardado por muitos.
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